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Dra. Gláucia Vaz e seu Aprendizado do Feminismo Negro

Texto: Doutora Gláucia Vaz

Antes de começar este texto fiquei por alguns minutos olhando para a tela do computador e recordando os inúmeros livros e artigos que li sobe feminismo ao longo de minha vida. A verdade é que fiquei aqui por alguns instantes tentando conectar toda essa literatura com todas as experiências vividas nesse duro processo de construção de uma mulher negra.

A primeira lembrança que me veio à mente foi de quando criança entrando numa escola pela primeira vez aos seis anos de idade e perceber que algo me diferenciava do restante da turma, em sua maioria branca. Compreender o isolamento promovido pelos colegas em tão tenra idade não é algo simples de ser estruturado e questionado por uma criança. Meus pais na simplicidade que tinham, com uma educação que mal os permitia a ler direito não conseguiram me preparar para esse momento, um momento também em que as questões raciais e de gênero não eram tão discutidas, não tínhamos a mídia abrindo portas, ainda não tínhamos âncoras negros nem tanta representatividade em meios científicos e acadêmicos para trazer a tona as discussões sobre a perpetuação de um vergonhoso legado herdado da escravidão no Brasil.

Eu fui a criança que nunca era escolhida para os times nas divisões de queimada, nem escolhida para ser o par de alguém num ensaio de dança comemorativa na escola. O isolamento não era promovido apenas por alunos, mas também por professoras que nunca me escolhiam para representar a “mocinha” ou a princesa das histórias teatrais apresentadas para os pais de alunos em certas épocas do ano. Esse lugar, esse papel de protagonista ficava sempre ocupado por meninas com perfil mais adequado, que eram o oposto daquilo que eu era: preta, com cabelo enrolado e pobre. Àquela altura dos meus seis ao dez anos não conseguia classificar o que era pior pra mim, ser preta, ser pobre, ter cabelo enrolado, ou ser mulher? Mas, afinal o que é ser mulher? Como ser uma mulher e ainda por cima preta?

Era ótima aluna, CDF mesmo, como chamavam naquela época, tirava ótimas notas, me interessava por ciência e tecnologia, tinha o sonho de ser cientista, doutora em alguma coisa. Talvez tenha me tornado a aluna das melhores notas por me sentir um fracasso em fazer amizades e com os garotos. Ah, os garotos… na adolescência não me pouparam de sua crueldade, dos apelidos, e a suportar por longos e intermináveis anos ser apontada sempre como a mais feia, a preterida, a que ninguém iria se interessar, a imperfeita, a intocável, parecia até que eu estava longe de ser mulher. Era ignorada pelas meninas e pelos meninos, algo difícil de compreender e que só pude começar a perceber quando me tornei adulta e fui tomando consciência de quem eu era.

Ao ingressar na universidade várias perguntas bateram a minha porta mas os autores, pensadores e filósofos a mim apresentados não davam conta de me dar as respostas, me davam apenas um esboço do mundo, mas não o desenho completo que eu tanto queria conhecer. A minha trajetória acadêmica tem um peso importante nesse meu processo de autoconhecimento, foi a partir dela que pude compreender que existem várias versões para um mesmo fato, mas a história contada sempre teve um caráter eurocêntrico e patriarcal.

Ao ter contato com Simone de Beauvoir, descobri que sua luta tratava principalmente por uma luta de igualdade de gêneros. Em sua obra “O segundo sexo”, a autora colocou em debate sobre questões como a natureza feminina, onde ela afirma que não acredita que existam qualidades, valores e modos de vida especificamente femininos, Beauvoir diz que isso é apenas um mito inventado pelos homens para prender as mulheres em sua condição de oprimidas. Diz também que “Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornarem-se seres humanos na sua integridade” (BEAUVOIR, 1949. Outras questões abordadas em “O Segundo Sexo” são as obrigações atribuídas pela sociedade às mulheres, como o casamento, a maternidade, a submissão e a falta de autonomia. Além disso, devem-se considerar todos os debates que estão envoltos a uma de suas frases mais famosas “Não se nasce mulher: torna-se mulher”, onde Beauvoir manifesta sua posição quanto à criação das mulheres e os valores que lhes são transmitidos durante a vida, mostrando que as mulheres não têm um destino biológico, mas se desenvolvem através de uma cultura que impõe qual é o seu papel na sociedade.

Mas me sentia incompleta com Beauvoir, e me sentia mal por isso. Sentia vergonha em dizer que essa luta tinha todo o seu valor e que essa obra também, mas que ainda sentia um abismo enorme dentro de mim, pois o feminismo das sufragistas não correspondiam aos meus anseios. Repetia pra mim mesma, que eu deveria compreendê-las, que eu deveria valorizá-las , mas certas questões teimavam em vir a minha garganta… por muito tempo engolia essas dúvidas, engolia o que eu realmente achava. Mas estando em um caminho profissional onde ser homem e branco já te coloca mil passos a frente de tudo, não pude mais engolir, resolvi mastigar bem e digerir de uma maneira lenta, para que depois pudesse enfim falar, botar mesmo pra fora.

As perguntas que eu trago são: Onde estavam as mulheres negras quando acontecia o movimento pelo sufrágio feminino no século XIX? Onde estavam as mulheres negras quando no Brasil, também no início do século XIX, era inaugurado o primeiro colégio para as meninas da casa grade e de sobrado, isto é, para as filhas de senhores de engenho e para as da elite urbana?

Ângela Davis, em seu livro “Mulheres, raça e classe”, de 1981, diz que as mulheres negras sempre trabalharam mais que as mulheres brancas. Aponta também que a feminilidade exaltada no século XIX classificava as mulheres brancas como mães protetoras, parceiras e donas de casa, amáveis com seus maridos. Enquanto isso , as mulheres negras eram anomalias sociais. E após abolição do tráfico as mulheres negras passaram a ser avaliadas em função de sua fertilidade para garantir que continuariam a dar para seus senhores mais filhos que seriam escravos para atuar no campo e na mineração. Dessa forma as mulheres negras “As mulheres não eram “femininas” demais para o trabalho nas minas de carvão e nas fundições de ferro, tampouco para o corte de lenha e a abertura de valas.”[Davis, 1981]

A indústria da feminilidade promovida pelas revistas e romances do século XIX colocavam as mulheres brancas como princesas, mães e donas de casa, enquanto as mulheres negras eram seres totalmente excluídos de uma vida em sociedade. Conseguem perceber agora o grande abismo que nos separa, de que a luta inicial do movimento feminista liderado por mulheres brancas não pautava as nossas necessidades? Enquanto as mulheres brancas iam às ruas buscando igualdade de gênero e reivindicando o direito ao trabalho, as mulheres negras estavam nas casas dessas mulheres brancas, cuidando de seus filhos, lavando a roupa suja dessas mulheres brancas e já com uma rotina de trabalho que não nos permitia pedir ainda mais trabalho.

Pensar na beleza em mulheres negras era impossível com toda essa construção racista da moda que reinavam em capas dessas revistas femininas. Nos relacionar com a feiura é algo muito maior do que somente uma questão de estética, mas busca na verdade nos silenciar, de fazer com que sintamos vergonha de nossa aparência e permaneçamos paralisadas a margem de nossa própria história. Só fui assumir um lugar de beleza após os 30 anos. Reconhecimento este que veio por meio de um ensaio com a Dri com o intuito de comemorar a conquista do meu doutorado. Lembro da Dri me dizer que foto não mente, que ela sempre diz a verdade. E a verdade é que me apaixonei por mim, foram também as primeiras fotos que fiz após passar por um processo de transição capilar e voltar a usar meus cabelos naturais sem nenhum recurso que os alisasse. A verdade é que me apaixonei pela minha imagem, há anos sufocada e distorcida por uma sociedade estruturalmente racista. Hoje sou capaz de usar essa imagem para motivar outras mulheres negras. A construção desse lugar de mulher negra, bonita e inteligente não é simples, não está pronto, e causa incômodo, por isso precisamos nos apoiar.


Bell Hooks, mulher negra, teórica feminista, artista e ativista social estadunidense disse que “desde do início do meu envolvimento com o movimento de mulheres fiquei incomodada pela insistência das mulheres brancas liberacionistas que a raça e o sexo eram duas questões separadas. A minha experiência de vida mostrou-me que as duas questões são inseparáveis, que no momento do meu nascimento, dois fatores determinaram o meu destino, ter nascido negra e ter nascido mulher.” Fala esta que nos leva a uma reflexão sobre interseccionalidade que podemos conversar em outro bate-papo, mas que inclui na pauta da igualdade de gênero, também as questões de raça e classe social, pois nós, mulheres negras e nascidas pobres somos atravessadas todos os dias de nossas vidas pelo preconceito que nasce dessas três vertentes atuando conjuntamente.

O que quero que entendam, é que quando falamos de um feminismo negro, não estamos dividindo o movimento, muito menos menosprezando toda a luta feita pelos primeiros movimentos feministas, na verdade apenas queremos que a pauta de TODAS as mulheres sejam discutidas e priorizadas. Não podemos falar de um movimento feminista que não seja de fato plural, quando temos uma pluralidade de mulheres, cada uma delas com diversas lutas internas e externas. O feminismo só pode ser um movimento verdadeiramente forte e autêntico se for capaz de abraçar a todas nós. Pois não somos nós mulheres?


Gláucia Aparecida Vaz Mulher Negra, Professora Universitária, Doutora em Ciência da Informação, Ativista e Fã de Beyoncé.

Para conferir o álbum com o ensaio da Gláucia – Clique aqui.